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"PASSAPORTE PARA O TERROR. OS VOLUNTÁRIOS DO ESTADO ISLÂMICO." PARTE I
Episode 7512th April 2024 • Hextramuros Podcast • Washington Clark dos Santos
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Shownotes

O livro "Passaporte para o Terror. Os voluntários do Estado Islâmico." é uma obra que se propõe a esclarecer o que motiva a descomunal presença de estrangeiros no autodenominado Estado Islâmico. A enorme diversidade econômica, social e cultural desses estrangeiros torna impossível encontrar algum padrão ou conjunto de fatores que explique todos os casos desse contingente, formado por mais de 30.000 homens, mulheres e crianças, oriundos de quase 100 países que, em geral, largaram tudo para se juntarem ao "Califado". Neste episódio, recebo o policial federal e Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas, Guilherme Damasceno, um dos autores deste livro, para investigarmos as evidências que levam um estrangeiro a se tornar voluntário do Estado Islâmico.

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Transcripts

ANFITRIÃO 0:15

Honoráveis Ouvintes! Sejam muito bem-vindos a mais um episódio do Hextramuros Podcast. Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! O livro "Passaporte para o Terror. Os Voluntários do Estado Islâmico." é uma obra que se propõe a esclarecer o que motiva a descomunal presença de estrangeiros no autodenominado Estado Islâmico. A enorme diversidade econômica, social e cultural desses estrangeiros torna impossível encontrar algum padrão ou conjunto de fatores que explique todos os casos desse contingente, formado por mais de 30.000 homens, mulheres e crianças, oriundos de quase 100 países que, em geral, largaram tudo para se juntarem ao "califado". No episódio de hoje, recebo o policial federal e Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas, Guilherme Damasceno, um dos autores deste livro, para investigarmos as evidências que levam um estrangeiro a se tornar voluntário do Estado Islâmico.

Agradecendo-lhe pela participação, Guilherme, dou-lhe as boas vindas e, seguindo o informal protocolo, peço que conte um pouco sobre ti e como surgiu a ideia e parceria com o professor Jorge Lasmar de escrever o livro Passaporte para o Terror. Os voluntários do Estado Islâmico:

CONVIDADO 2:01

Primeiro queria te agradecer pelo convite. É um prazer e uma honra participar desse podcast, conduzido por você e com quem eu tive o prazer de trabalhar nos tempos de PF em Minas e, depois, em outras oportunidades, quando você esteve no DEPEN, nos ajudou a construir relações tão importantes com os colegas do DEPEN. É um prazer muito grande, bater papo contigo hoje! Hoje eu estou completando um pouco mais de 25 anos de carreira na Polícia Federal, como Agente de Polícia Federal, dos quais, os últimos sete ou oito tenho trabalhado na Divisão de Cooperação Internacional da PF. Esse momento, exerço a função de Agente Policial Adjunto na Embaixada de Ottawa no Canadá. A parceria com Professor Jorge começou cerca de onze, doze anos atrás, quando eu o procurei, interessado na linha de pesquisa que eles estavam abrindo para o já renomado Curso de Relações Internacionais da PUC de Minas e soube que eles estavam abrindo uma linha de estudos de terrorismo. Me interessei e comecei a estudar com eles e depois de um ou dois, três anos de estudo, decidi partir para o mestrado. Mas, foi um "timing" muito feliz para mim, porque quando eu comecei a estudar com o Professor Jorge e a Professora Rashmi era justamente um momento onde se formava uma certa tempestade perfeita, uma concomitância de circunstâncias no Oriente Médio: Primavera Árabe, saída dos americanos do Iraque, que promoveu e possibilitou o ressurgimento do grupo que depois acabou sendo conhecido como Estado Islâmico. E embora o fenômeno chamado "Foreign Fighters", dos combatentes estrangeiros, essa ideia de estrangeiros deixando suas casas, seus países para lutar, para se envolver em conflitos que não lhes pertencia, o que havia muito pouco ou quase nenhum impacto ou relação direta com suas vidas, era algo muito intrigante e sempre foi algo muito intrigante, objeto de várias pesquisas acadêmicas. Mas no caso do movimento que começa em dois mil e doze, de pessoas saindo de mais de 100 distintos países, quer dizer, um perfil muito mais variado do que havia acontecido nas ondas anteriores de combatentes estrangeiros para guerras no Oriente Médio e, principalmente os números. Se, antes, a gente falou em dez mil estrangeiros indo para a guerra do Afeganistão, sete ou oito mil indo para a guerra do Iraque, quando os Estados Unidos intervem no Iraque para depor Saddam Hussein, nesse momento, a gente já começava, logo no começo, a falar de dez, quinze, vinte mil, passando para dois mil e treze, dois mil e quatorze já se falava em trinta, quarenta e, até, alguns relatos, algumas pesquisas apontando para muito mais - sessenta, setenta mil estrangeiros chegando no conflito -. Inicialmente, é verdade, muito na onda de uma narrativa de Primavera Árabe, no sentido de: "vamos ajudar os grupos locais a derrubar os governos ditatoriais do Oriente Médio" e, depois, com uma mudança de narrativa, que já era a própria criação de um Estado, entre aspas, verdadeiramente islâmico. Então, nos surgiu a pergunta desde o começo: quê explica isso? O que poderia explicar por que alguém deixa sua vida, sua família, filhos pra trás e vai para um lugar distante lutar uma guerra que cujas consequências, cuja repercussão nada afetaria suas vidas?

ANFITRIÃO 5:38

Quais foram os maiores obstáculos ao pesquisar e reunir informações para o livro?

CONVIDADO 5:46

Essa é uma pergunta muito boa, Clark, porque, proporcionalmente ao quão fascinante parecia ser o objeto de estudo, era igualmente difícil encontrar material confiável para basear as pesquisas! Mas, de certa maneira, é uma dificuldade inerente aos estudos de radicalização em geral. Porque quando a gente fala no chamado processo de radicalização, a gente está muitas vezes buscando entender motivações psicológicas muito internas de potenciais recrutas, de potenciais terroristas e que, nem sempre, são acessíveis, nem mesmo para uma entrevista. O que te garante que "o quê" aquele terrorista - principalmente quando você vem entrevistar um "Foreign Fighter" ou um terrorista depois de uma atuação de polícia, ou depois de uma prisão, ou depois de um atentado - que ele pode ter mil outros motivos para te passar uma versão romantizada das suas motivações do que por que ele fez isso, do por que fez aquilo. Ou seja, ainda que nos fossem acessíveis os voluntários do Estado Islâmico para entrevistas, ainda assim, o pesquisador de terrorismo ou de radicalização não pode garantir que as versões que são passadas pelas próprias pessoas envolvidas são verdadeiras. E, obviamente, ao fazermos uma pesquisa desse nível de complexidade do Brasil, a gente acabava não tendo outro remédio que não fosse buscar as pesquisas feitas no

exterior. As mais confiáveis, as mais robustas, as metodologicamente mais adequadas para o nosso próprio estudo e, na medida do possível, também tentar o maior acesso às chamadas fontes primárias. Então, o que a gente fez muito também, foi analisar as próprias publicações do Estado Islâmico. Na medida do possível, a gente tentava acompanhar e trazer um pouco também para o estudo do que o próprio Estado Islâmico, com a sua imensa rede de propaganda, conseguia publicar e de que maneira isso afetava a decisão das pessoas de se dirigir ao Estado Islâmico.

ANFITRIÃO 8:14

Qual foi a razão para que vocês dividissem em categorias os fatores motivadores para que os estrangeiros se unam ao Estado Islâmico?

CONVIDADO 8:27

Primeiramente, eu acho que nunca é demais lembrar que, como a gente está falando de estudos de terrorismo ou estudos de radicalização, nós estamos tratando de temas absurdamente complexos e com muito poucos consensos, mesmo dentro da própria comunidade acadêmica! Quando a gente traz isso para o mundo político, das relações internacionais, de pautas tão distintas entre os países, isso obviamente agrega um outro nível de complexidade e de discórdia. Mas o que ficou muito claro desde o começo da pesquisa: que não era possível generalizar e tentar chegar a uma explicação que pudesse trazer uma fórmula, uma receita de bolo que pudesse explicar a mobilização de todas as pessoas que foram para o Estado Islâmico. O que eu quero dizer é que, ainda que existissem lá em dois mil doze e dois mil e treze, na média, generalizações muito populares, como por exemplo, ao tentar explicar a ida de tantos voluntários jovens europeus nascidos na Europa, inclusive, para o Estado Islâmico, era muito normal escutar algo como: "isso está ocorrendo, porque esses jovens fazem parte de uma segunda, terceira geração de imigrantes que nasce na Europa, mas sem uma ligação forte com seus antepassados, com suas culturas de origem, mas também sem uma identificação com a cultura local, se sentem discriminados pela sociedade ocidental, etc, fazendo com que eles fiquem, entre aspas, perdidos entre dois diferentes mundos, se tornando vulneráveis e presas fáceis para recrutadores, etc." Ainda que esse tipo de versão representasse, sim, um fator relevante para parcela dos voluntários, nesse caso, europeus que iam para o Estado Islâmico, quando você ia estudar a história de vida de alguma pessoa de que havia saído a notícia de que havia pegado o avião, havia ido para a Síria, Iraque, era muito difícil de encontrar duas, três pessoas com uma história de radicalização que parecia semelhante! Então ficou muito claro desde o começo de qualquer generalização que uma explicação que pudesse servir para a maioria dos voluntários do Estado Islâmico não seria verdadeira, não seria procedente e, de certa maneira, até dando um certo spoiler aqui, isso acabou sendo uma das mensagens principais da pesquisa. A ideia de que desconfie de simplificações e de fórmulas, de explicações que tentem apontar um único fator como um fator capaz de explicar o processo de radicalização dessas pessoas. E, na tentativa de ir buscando uma maneira que eu pudesse ir sistematizando e organizando fatores tão diversos e de níveis aparentemente tão distintos, muitas vezes a gente encontrava fatores que eram claramente de um nível, de uma categoria diferente. Era muito difícil você colocar fatores sócio-econômicos-culturais numa mesma prateleira de motivações mais psicológicas, como uma necessidade de encontrar um sentido para a vida com a mesma busca, com adrenalina, aventura, etc. E o que a gente acabou fazendo foi tentar não inventar a roda e indo buscar na literatura mais clássica as teorias de um modelos, esquemas que pudessem ser adaptados para o fenômeno dos "Foreing Fighters" na Síria e no Iraque. Na literatura de radicalização, existem vários modelos que buscam explicar esse processo. O fato de ser um processo é praticamente um dos poucos consensos dentro dos estudos de radicalização. A radicalização normalmente se divide, no mínimo, em duas fases: a radicalização propriamente dita, na qual o indivíduo adquire essa mentalidade radical, esse extremismo no pensar, no entender legítimo do uso de violência para defender aquela comunidade ou para consertar injustiças que existem no mundo. E o segundo momento que chamamos de engajamento, que é o momento no qual ele realmente decide perpetrar um ataque terrorista ou pegar um avião e se juntar ao grupo terrorista e lutar uma guerra que não lhe pertence, etc. E dentro desse consenso que existe, de que isso é um processo, é uma mudança de fase, crescente que vai acontecendo, existem vários modelos que buscam sistematizar, esquematizar essa evolução de momentos e desde uma analogia com uma escada, a pirâmides ou mesmo uma divisão em níveis de valores. A gente pegou uma ideia de dividir em três níveis de fatores que já existia na literatura da radicalização em geral. Por exemplo, Martha Crenshaw, uma das autoras mais clássicas de terrorismo, no seu livro sobre as causas do terrorismo, já dividia três níveis de fatores. Existe também a ideia muito clássica dos estudos de radcialização que tem a ver com as ideias de "push factors" e "pull factors", que são os fatores macro que empurram o indivíduo para a direção do terrorismo e os fatores também que vêm de fora para dentro, ou seja, do grupo atuando na atração desses potenciais voluntários. Então, nesse intuito de não inventar a roda e tentar adaptar para o fenômeno moderno dos "Foreign Fighters" do Estado Islâmico, a gente tentou buscar todas essas ideias já consolidadas na literatura e trazer para o nosso estudo a que mais parecia adequada. Então, uma ideia de três níveis, um nível interno de fatores, correspondendo aos fatores psicológicos; um nível intermediário, onde entra boa parte dos chamados fatores de atração dos "pull factors", que são a ideologia do Estado Islâmico, a propaganda e fatores como a dinâmica de grupo, que a ideia de que isso foi muito claro no fenômeno do Estado Islâmico, como a grande maioria, os 70, 80% dos combatentes, dos voluntários, foram atraídos para o grupo pelos próprios amigos e familiares próximos, que primeiro se dirigiram para a Síria, Iraque. Essa dinâmica de grupo, ou seja, de um amigo, de um parente, de um primo, puxar o outro, convencer o outro e influenciar o outro, também chamado de "Peer Presure", tem várias expressões na literatura que se referem a um mesmo fenômeno que foi muito presente, que fazia parte do nosso nível intermediário de fatores. Em um nível mais externo, se a gente pensar em três círculos concêntricos, um nível interno, um segundo nível intermediário e um terceiro nível mais externo, com os fatores mais macro: os fatores sócioeconômicos, fatores relacionados à geopolítica do Oriente Médio, a política internacional, etc. A nossa conclusão, a ideia geral, para terminar, era que a explicação porque essas pessoas tomaram a decisão de ir para a Síria e para o Iraque e lutar em prol da ideia de um Estado verdadeiramente islâmico e lutar de um lado de um grupo terrorista era mais bem explicada por uma combinação de fatores desses três níveis, que dificilmente seria uma combinação que se repetiria de um indivíduo para outro. E em cada indivíduo a gente teria uma proporção maior ou menor de determinados fatores e que para cada um atuaria uma específica combinação quantitativa e qualitativa desses fatores descritos na pesquisa.

ANFITRIÃO:

Qual papel as redes sociais desempenham na propagação da ideologia jihadista e na atração de voluntários?

CONVIDADO:

Papel crucial! Na verdade, o surgimento da internet muda completamente a dinâmica desse processo para as organizações terroristas. Se a gente parar para pensar, a internet surge na virada do Século e, logo em seguida, a gente já tem um 11 de setembro! Depois, a gente tem uma intervenção dos Estados Unidos no Afeganistão, fazendo com que a chamada Al-Qaeda central, o núcleo duro da Al-Qaeda, se espalhe ao redor do mundo. Então, surgem as franquias da Al-Qaeda e começa um uso bastante eficiente e frenético por parte da Al-Qaeda de seus apoiadores. Claro que naquele momento não existiam ainda redes sociais propriamente ditas, mas ali, na virada do século, já começa o recrutamento a acontecer, muito, por meio dos fóruns de bate papo que existiam e algumas das afiliadas à Al-Qaeda, como a Al-Qaeda no Iraque, quando houve a intervenção dos Estados Unidos e surge então uma segunda grande onda de combatentes estrangeiros no Iraque, depois do Afeganistão, já começam a se utilizar muito da internet para fim de recrutamento. Mas, claro, embora a Al-Qaeda tenha se aprimorado muito ao longo dos anos, desde o começo do século, em termos de propaganda, de produção de conteúdo midiático, o Estado Islâmico atingiu um nível de produção de material, de elaboração, de estrutura de produção de propaganda totalmente sem precedentes! Além de ter toda uma estrutura descentralizada, com vários centros de produção de propaganda, o Estado Islamico contava com um verdadeiro exército de voluntários ao redor do mundo para disseminar, para replicar esse material que era produzido como uma rede bem complexa, extensa, descentralizada, de colaboradores, disseminadores. E, nesse ponto específico da disseminação, houve um papel gigantesco das redes sociais e de algumas plataformas em especial. Se a gente pára para pensar na importância das redes sociais para o movimento jihadista, não é muito difícil perceber, até, observando fenômenos mais cotidianos, como esse fenômeno da polarização política que vem ocorrendo em todo o mundo, inclusive no Brasil, a gente vê como aplicativos de conversa e algumas plataformas facilitam essa aproximação de pessoas com a mesma visão de mundo e, ao mesmo tempo, o afastamento de outras pessoas que venham a questionar as nossas crenças, uma vez que as próprias plataformas, muitas vezes vão te sugerindo outras pessoas que consomem aquele mesmo tipo de conteúdo e isso vai gerando uma bola de neve e fazendo com que as pessoas de cada grupo particular vão reforçando ainda mais as suas visões de mundo. E esse círculo vicioso funciona muito a favor dos movimentos extremistas violentos, independentemente da matriz ideológica, seja neonazismo, jihadismo, extrema direita, esquerda ou antissemitismo, esse fenômeno das coisas serem aplicadas e serem reforçadas facilita muito o trabalho dos movimentos violentos. Mas, voltando ao Estado Islâmico, muita coisa chamava muito a atenção no uso de internet e de redes sociais, como por exemplo, como eles eram altamente adaptativos para fugir da censura das grandes potências do rastreamento. Eles tinham táticas extremamente moldadas para cada tipo de público alvo. O Estado Islâmico tinha uma narrativa específica para a mulher ocidental. Eles sabiam desenhar muito bem a narrativa e a forma de atrair os pontos vulneráveis de cada tipo de público alvo. E isso, na verdade, a própria natureza do movimento do Estado Islâmico em comparação com outras organizações terroristas, facilitava muito também essa utilização de terceiras pessoas, não necessariamente do centro da organização do Estado Islâmico, ao contrário do que acontecia antigamente, como o que acontecia com a Al-Qaeda, não bastava você querer ser o membro da Al-Qaeda e, já no caso do Estado Islâmico, se pegava um avião para Istambul, quer dizer, uma coisa que nem chamava tanta atenção assim, bastava você pegar um voo e algumas horas de ônibus, você estava dentro dos territórios dominados pelo EI, dentro do qual eles gozavam de uma grande soberania. E uma vez lá dentro, você se tornava, sim, um membro do Estado Islâmico da organização terrorista mais importante do mundo! Uma vez dentro do Estado Islâmico, você estava totalmente autorizado e liberado a postar conteúdo midiático, a twitar, a postar instagran e inclusive, sobretudo, tentar convencer outras pessoas de ir para o EI. Embora esse consumo, por si só, de propaganda jihadista possa parecer para alguns algo fútil e, talvez, até inofensivo é importante comentar que muitas pesquisas recentes mostram que elas têm se tornado, cada vez mais, especialmente relevantes no processo de radicalização, principalmente quando a gente fala de atores solitários, essa pessoa que começa o processo de radicalização por conta própria, sem um contato direto com algum membro da organização ou mesmo um recrutador em carne e osso. O John Horgan, que é um psicólogo especialista em terrorismo, que pesquisa há décadas terrorismo, entrevista terroristas, etc, no último livro dele, agora, do final de dois mil e vinte e três, mostra muito bem como o consumo de propaganda jihadista, muitas vezes, inicia o processo de radicalização de algumas pessoas.

ANFITRIÃO:

Meu caro, como a geopolítica e o contexto global se relacionam com as escolhas individuais dos voluntários áreas?

CONVIDADO:

Esse é um tipo de pergunta que a gente precisa separar e dividir essa pergunta em mais de uma resposta. Porque, de um lado, é interessante observar como todas as narrativas e ideologias de grupos extremistas, especialmente de grupos com pautas mais internacionais, como o EI, que são quase sempre construídas com base em aspectos e fatos da política internacional, interpretação de fatos históricos e questões geopolíticas, principalmente quando a gente está falando de Oriente Médio. Se você conseguir entrevistar um terrorista da Al-Qaeda ou um "Foreign Fighter" do Estado Islâmico em busca das suas motivações, fatalmente vamos escutar alguma versão altruística e romanceada das suas intenções relacionadas com suas percepções de justiça e a vontade de corrigir injustiças que existem no mundo ou defender um determinado povo oprimido pela intervenção das grandes potências ocidentais, ainda que esse seja um voluntário que tenha ido puramente por motivos que a gente chama na nossa pesquisa de egoísticos. Ou seja, um cara que tenha ido simplesmente para herdar uma casa, ter um salário estável - o EI pagava salários para os seus voluntários -, ter perspectivas de lhe ser atribuída uma esposa. Ou seja, isso não é o tipo de motivação que normalmente um terrorista revela numa entrevista. É sempre muito difícil saber se e o quão realmente foi preponderante, motivações mais altruísticas, tipo defender ou corrigir determinadas injustiças, ainda que ele te afirme que isso que lhe fez entrar na causa. Mas dito isso, se a gente olha o caso específico do Estado Islâmico, houve, sim, muitos voluntários que se juntaram ao grupo por questões pragmáticas, se envolvendo realmente na geopolítica local, sobretudo uma guerra étnica que existe, naquele momento entre sunitas e xiitas, que se acirrava tanto naquele momento histórico. Um morador sunita de uma vila na divisa do Iraque com a Jordânia, muitas vezes optava por lutar e ajudar o Estado Islâmico, um grupo extremista sim, mas sunita, que arriscar ser governado, muitas vezes massacrado por governos locais xiitas, apoiados por grandes potências. E outra coisa relacionada com isso é que, em um segundo momento da expansão do Estado Islâmico, especialmente quando o Estado Islâmico passa a ser combatido depois de todas aquelas decapitações, dos filmes, as pessoas sendo decapitadas, etc, e o Estado Islâmico passa a ser combatido por uma coalizão de países liderada pelos Estados Unidos, entra também em cena uma clássica narrativa jihadista, muito utilizada anteriormente, em outras guerras, como foi o caso da guerra do Afeganistão contra os soviéticos, na própria guerra do Iraque contra os Estados Unidos, que a ideia de que seria uma obrigação de todo bom muçulmano se dirigir ao conflito para expulsar invasores em terras muçulmanas. Como eu disse, já aconteceu em outras guerras, no caso do Estado Islâmico, muitos estrangeiros, sim, se dirigiram ao conflito para lutar contra esse intervencionismo ocidental ou de grandes potências em terras muçulmanas.

ANFITRIÃO:

Na sua opinião, o que diferencia a dinâmica de grupo no contexto do Estado Islâmico em comparação com outros movimentos sociais?

CONVIDADO:

Uma ideia trazida pela literatura de terrorismo nada mais é do que a ideia de que as pessoas frequentemente iniciam seus processo de radicalização, principalmente o processo de engajamento, a hora de realmente decidir se envolver realmente violentamente ou tomar a decisão de pegar o avião, de ir para o Estado Islâmico. Muitas vezes, no caso do Estado Islâmico, foi muito frequente, influenciados por pessoas próximas, primos, amigos, colegas do boxe, do futebol, da academia, do centro religioso, etc. E sua pergunta tem uma razão de ser, realmente, porque, de fato, há pesquisas relacionadas a diversos outros tipos de movimentos extremistas que demonstram a mesma relevância do fenômeno. Então, no que diz respeito à chamada dinâmica de grupo, eu diria que eu vejo mais semelhanças entre os movimentos de distintas ideologias que diferenças. O que chamou a atenção no caso dos "Foreign Fighters" do Estado Islâmico, sem dúvida, foram os números e, também, a frequência com que essa dinâmica de grupo se mostrava evidente naqueles processos de radicalização que se tornaram conhecidos. Na minha opinião, de novo, de certa maneira, tem muito a ver com o contexto e com as peculiaridades do Estado Islâmico como grupo terrorista, que os diferenciava muito de outras organizações que atuavam mais nas sombras escondidas do submundo, como por exemplo, a Al Qaeda. Então, se você se lembra, o Estado Islâmico entre dois mil e doze e dois mil e quatorze e dois mil e quinze, controlava grandes territórios! Chegou a ter uma extensão territorial do tamanho da Grã-Bretanha sem muitos problemas, até o momento que as grandes potências lideradas pelos Estados Unidos decidem intervir militarmente, era relativamente fácil para um europeu chegar na Síria, pegar o avião para Istambul, cruzar o território da Turquia, e de ônibus, que era a rota mais comum, sem grandes desafios, sem muitos obstáculos e sem correr muitos riscos. Essa falta de obstáculo, de perigos que pudessem dissuadí-los, acabou potencializando muito essa dinâmica de grupo, no caso do Estado Islâmico.

ANFITRIÃO:

Como a propaganda do ISIS se adapta para atingir diferentes públicos, incluindo brasileiros. Neste aspecto, entendes como eficaz tal estratégia?

CONVIDADO:

Foram extremamente eficazes nessa adaptação da propaganda das narrativas. Ela se alterou significativamente entre dois mil e doze e dois mil e dezesseis, desde a ideia da imigração, que era um dever obrigatório para todo bom muçulmano imigrar para a Síria e Iraque e ajudar na construção do que iria se tornar o primeiro Estado moderno verdadeiramente islâmico. Isso se altera depois, com a entrada da coalizão enfrentando o Estado Islâmico, eles começam também a incentivar os ataques domésticos das pessoas que não fossem capazes de viajar, mas que pudessem cometer atentados domésticos nos países onde viviam. E assim como faziam diferentes versões em vários idiomas das publicações, faziam versões distintas, claramente voltadas para público distinto, faziam abordagens nitidamente focadas em mulheres do mundo árabe e outras bem diferentes, focadas para mulheres que viviam no Ocidente. Mas com relação a especificamente ao Brasil, não me lembro de ter visto publicação oficial do Estado Islâmico, quero dizer, fonte primária, que tenha realmente partido em português do Estado Islâmico. Houve sim, replicações, disseminações em português, mas, de pessoas que estavam em países de língua portuguesa, na África ou mesmo em Portugal, traduziam e replicavam. Mas, não me pareceu que o Estado Islâmico tinha e tentou, em algum momento, focar em países de língua portuguesa, muito menos especificamente o Brasil. A gente teve, sim, combatentes, voluntários que saíram de países distintos das Américas. Teve o Brasil, o Chile, Argentina, Estados Unidos e Canadá, óbvio e, curiosamente, o país do qual saíram proporcionalmente mais voluntários para o EI foi Trinidad Tobago, de onde saíram centenas e não me lembro de nenhum esforço aparente para atrair pessoas do Brasil.

ANFITRIÃO:

Você acredita que a operação policial denominada Hashtag, deflagrada pela Polícia Federal em julho de dois mil e dezesseis, teve algum impacto na prevenção de atividades relacionadas ao Estado Islâmico no país? Por quê?

CONVIDADO:

Pergunta difícil de responder, por alguns motivos! Minhas falas aqui são exclusivamente frutos da minha observação, da minha opinião pessoal, a qual, mesmo que de alguma maneira, impregnada com minha experiência profissional, de nenhuma maneira representa a visão oficial da instituição da Polícia Federal! Esclarecido isso, tendo em vista também que não existem pesquisas de campo sobre teorias sobre a utilização do Brasil, eu honestamente não me vejo com credenciais ou não me sinto numa posição confortável. Acho que somente os colegas que estão no campo, que trabalham com o tema no dia a dia, têm essa legitimidade para dar uma opinião com a consistência que seu podcast merece.

ANFITRIÃO:

Muito interessante as tuas explicações, meu caro. Neste momento, antes de prosseguirmos com outros questionamentos e visando a melhor reflexão acerca da riqueza e profundidade das suas respostas e esclarecimentos, faremos um intervalo na próxima semana. Prosseguiremos nesta fascinante conversa.

Honoráveis ouvintes, este foi mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! No conteúdo de hoje, acompanhamos a primeira parte da entrevista com Guilherme Fonseca, um dos autores do livro "Passaporte para o Terror. Os voluntários do Estado Islâmico". Acesse www.hextramurospodcast.com! Saiba mais, comente, inscreva-se e compartilhe nosso propósito. Será um prazer ter a sua colaboração! Pela sua audiência, muito obrigado e até a próxima!

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