Neste conteúdo, na sequência da Série "Questões Raciais na Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil", novas e profundas reflexões sobre a relação entre racismo estrutural e abordagens policiais no Brasil, com a participação do Professor Doutor AZOR LOPES DA SILVA JÚNIOR. Ele compartilha sua experiência como oficial da Polícia Militar e advogado, destacando a importância de entender o contexto histórico da escravidão e suas consequências sociais atuais. A conversa aborda a legitimidade das práticas policiais e a desproporcionalidade da população negra no sistema prisional, destacando a necessidade do debate democrático entre juristas, policiais e a sociedade civil para encontrar um equilíbrio entre segurança pública e direitos humanos. Com uma visão crítica, ele propõe que as abordagens policiais devem ser fundamentadas na legalidade e na dignidade da pessoa humana, afastando o preconceito e promovendo uma reflexão mais ampla sobre o papel das instituições no combate à criminalidade.
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Honoráveis Ouvintes! Sejam muito bem-vindos a mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião!
Na sequência da Série Questões Raciais na Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil, tenho a honra de receber o Professor Doutor Azor Lopes da Silva Júnior, organizador da coletânea "Polícia Preventiva no Brasil. Direito Policial, Abordagens e Busca Pessoal",
obra que discute uma temática essencial para o contexto brasileiro, debatendo as práticas de abordagens policiais rotineiras, explorando os fundamentos jurídicos que as cercam e atrelando-as a reflexões sobre os seus impactos nas populações negras.
Doutor Azor, ao saudá-lo, apresento-lhe as boas-vindas e agradeço por compartilhar conosco sua visão e conhecimento sobre temas tão sensíveis e urgentes! Uma satisfação tê-lo conosco!
Podes nos dizer como sua experiência como oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo influenciou para a organização do conteúdo da coletânea?
Azor Lopes da Silva Júnior:Doutor Washington; eu agradeço pelo convite honroso que me fez e, de fato, me apresento aqui. Meu nome é Azor Lopes da Silva Júnior, sou advogado há 10 anos aqui no Estado de São Paulo e, antes disso, por 33 anos, fui oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Me aposentei no posto de coronel, Comandante da Oitava Região Administrativa do nosso estado, vizinha aqui do Oeste Paulista, vizinha do seu estado, Minas Gerais.
Ao longo dessa minha carreira, tanto de polícia quanto, mais recentemente, há 10 anos como advogado, por 26 anos eu sou professor de Direito, nas áreas de Direito Penal e Direito Constitucional. E é exatamente por isso que, no ano de dois mil e vinte e dois, quando o Superior Tribunal de Justiça julga o Habeas Corpus 158.580 da Bahia, julgamento que aconteceu no dia 19 de abril, um colega, o Doutor Ronaldo João Roth, magistrado aqui do estado de São Paulo, me convida e convida a outros para comporem essa obra. E a mim coube coordená-la enquanto ele era o seu organizador. E a obra tem como objetivo maior discutir aqueles fundamentos trazidos pelo ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, que pela Sexta Turma, de uma forma bastante emblemática, enfrentou a questão do racismo estrutural, em se falando de buscas pessoais e abordagens policiais. A bem da verdade, esse foi o objetivo da obra!
A obra foi publicada pela Editora Dialética no ano de dois mil e vinte e dois, exatamente o ano desse julgamento, até para dar a nossa visão sobre o tema e de lá para cá o tema continua, persiste, sendo debatido. Não só a questão da legitimidade e legalidade de buscas pessoais efetivadas sem um mandado judicial por autoridades policiais, assim como também a questão fundante que é a busca de uma resposta se, de fato, as agências policiais, o Ministério Público, o Poder Judiciário estão contaminados pelo que se convencionou chamar de racismo estrutural.
Washington Clark dos Santos:Como o senhor enxerga a possível contaminação do racismo estrutural nas decisões judiciais que legitimam abordagens policiais com base em suspeita?
Azor Lopes da Silva Júnior:Bom, eu acredito que essa contaminação pelo chamado racismo estrutural, ela passa por um primeiro momento de reflexão sobre o reconhecimento de uma história brasileira, de uma história até mundial, em que a escravidão, notadamente, daqueles que vieram da África, existiu. O comércio de pessoas para fins de trabalho forçado. Isso é inegável na história e é inegável que o Brasil também tenha se envolvido em muito nisso! Na verdade, a nossa população, em boa parte, é constituída de pessoas que têm exatamente essa origem.
A gente não pode se esquecer que a abolição da escravidão por completo se deu em mil oitocentos e oitenta e oito e, portanto, um passado relativamente recente.
Até pouco tempo atrás, nós tínhamos ainda senhores e senhoras centenários que nasceram sob o julgo da escravidão e que foram, em seguida, libertados e que até pouco tempo atrás viviam essas pessoas entre nós aqui. como nossos velhinhos, avós, bisavós, e que houve no Brasil uma grande miscigenação. Alguns, até, vão criticar e dizer, sob o ponto de vista de estudos sociológicos e antropológicos, que houve uma política de embranquecimento da população, o que também não pode ser negado! O fato é que houve a miscigenação! E, pior ainda, é que a história nos revela que o processo de abolição da escravidão aqui no país fez com que essas pessoas, então escravas, fossem simplesmente despejadas em guetos! Elas passassem da condição de seres não tratados como humanos para pessoas livres, mas, sem qualquer meio de subsistência. Isso é inegável! Então, se nós conjugarmos a questão da miscigenação à realidade demográfica daqueles que foram trazidos forçadamente aqui para as nossas terras do Brasil para serem escravos em lavouras, nós vamos encontrar, pelo pouco passar de tempo, de lá para cá, absolutamente precariedade ou inexistência de assistência a essas pessoas de mil oitocentos e oitenata e oito até os dias atuais, que boa parte delas ainda habitam as camadas menos favorecidas da sociedade.
Agora, dizer que haja um racismo que contamine as instituições e corporações que integram o sistema de justiça criminal, me parece também ser uma visão tanto quanto deturpada da realidade! Porque, se não, a partir de mil novecentos e oitenta e oito, com a Carta Cidadã, mas, mesmo antes das constituições passadas, sempre tiveram em seus textos consagrado o direito à igualdade entre todos os seres humanos, e a Carta de 88 ainda falou de não discriminação! Então, sob o ponto de vista legal e sob o ponto de vista pedagógico, a sociedade brasileira há muito tempo vive com o conceito de não discriminação,
ainda que, eventualmente, no próprio inconsciente coletivo, e até no inconsciente -em alguns casos mais nefastos, até no consciente-, haja pessoas que tenham lá, consigo, marcas genéticas de discriminação, marcas que revelam um tratamento preconceituoso, xenófobo, a outros seus irmãos e semelhantes! Mas, eu não consigo admitir como uma verdade absoluta que haja na máquina de justiça criminal, efetivamente, uma opção orientada, deliberada para poder operar um racismo que se diz racismo estrutural!
Washington Clark dos Santos:Os dados do Conselho Nacional de Justiça e Secretaria Nacional de Políticas Penais mostram uma alta porcentagem de pessoas negras no sistema prisional. Tal desproporcionalidade, em sua opinião, está vinculada à prática de abordagens policiais rotineiras e seletivas? Por quê?
Azor Lopes da Silva Júnior:É inegável que os dados do Conselho Nacional de Justiça e da Senapem mostram uma população carcerária majoritariamente negra ou que se define como negra. Mas eu acredito que esse dado observado de maneira isolada não leve a uma tese correta! A impressão que se tem, numa visão limitada desses dados, é de que todo o sistema de justiça criminal esteja direcionado a aprisionar pessoas por uma razão de racismo estrutural, o que, sinceramente, eu não acredito que sequer possa ser uma hipótese verdadeira!
Eu acho que esse dado precisa ser cruzado com dois outros dados importantes. Um primeiro dado importante, oferecido pelo IBGE é de que a população em geral, não a carcerária, ela também é majoritariamente negra, se define como tal ou de fato tem um biotipo de afrodescendência. Então, esse é um primeiro dado que me parece muito importante que deve ser observado em conjunto com os dados do CNJ e da SENAPPEN!
Mas, além desse dado, de uma população brasileira majoritariamente negra, nós também temos que observar um outro dado que é oferecido também pelo IBGE, que é um dado sócio-econômico, que revela que a nossa população, também majoritariamente, ocupa os estratos mais baixos, financeiramente, da nossa sociedade!
Então, cruzando esses três dados; cruzando dados do CNJ que revelam população carcerária e da SENAPPEN, mas também cruzando, olhando esses dados com o dado do IBGE de uma população em geral do Brasil que se define, se identifica e se vê como negra, ou efetivamente é negra e, finalmente; o terceiro dado, que essa população brasileira ainda, infelizmente, ocupa os estratos mais pobres da sociedade, sob o ponto de vista socioeconômico, a gente pode traçar uma hipótese que me parece muito mais plausível: é exatamente nos estratos mais pobres da sociedade, socialmente pobres, economicamente pobres, é que a criminalidade organizada, e particularmente o tráfico de drogas, busca o seu exército de pequenos varejistas do comércio de drogas e, inegavelmente, todo o sistema de justiça criminal atua de uma maneira bastante focada no combate ao tráfico de drogas! Ora, é exatamente a partir dessa perspectiva, que não por uma questão de preconceito, mas por uma questão de realidade, que também não pode ser negada, que nós vamos encontrar dessas classes menos favorecidas, de uma população majoritariamente negra, exatamente, e infelizmente, uma parcela ínfima dessas classes, que se entrega, talvez por exclusão social, mas também, talvez, por uma questão de oportunidade que é dada pelo crime organizado, para a prática criminosa dessa natureza! E aí, graças à ação muito focada do aparelho de justiça criminal, são exatamente esses pobres, essa pequena parcela da comunidade menos favorecida, que coincidentemente de uma população majoritariamente negra, também lá é majoritariamente negra, é que acaba sendo enclausurada! E veja; a própria Constituição Cidadã de mil noventos e oitenta e oito foi quem trouxe o tráfico de drogas à condição de um crime equiparado ou assemelhado aos crimes hediondos, crime aos quais -tráfico de drogas e crimes hediondos-, aos quais sequer garantida liberdade provisória, com ou sem fiança. Crime hediondo e os seus assemelhados, como o caso do tráfico de drogas, aqui, até pouco tempo atrás, até dois mil e seis, não se permitia sequer a progressão no regime e a pena era, por força da Lei dos Crimes Hediondos, a Lei oito mil e setenta e dois, cumprida integralmente em regime fechado! Então, a vontade do constituinte, mesmo na Carta Cidadã, foi de proscrever, de tratar com muito mais rigor essa modalidade de crimes! O crime organizado, especialmente o tráfico de drogas, mas não só ele, os crimes hediondos também, a tortura, também, assim foi tratada.
Então, é nessa perspectiva, cruzando, portanto, dados históricos de uma população que é dos idos de mil oitocentos e oitenta e oito, deixa a condição de escravo e passa a ser um homem livre desassistido pelo Estado da época e, ainda hoje, não tão bem assistido, apesar das políticas afirmativas que, com o passar do tempo, vieram socorrer e fazer esse resgate histórico e social, mas, o fato é que o Brasil tem uma população pobre que é cooptada pelo crime, especialmente o tráfico de drogas, e é exatamente esse tipo de crime que engorda as estatísticas do CNJ, se nós formos ver a população carcerária, majoritariamente está encarcerada pelo envolvimento no tráfico de drogas.
Washington Clark dos Santos:Como a coletânea aborda o equilíbrio entre a necessidade de segurança pública e a proteção contra abordagens discriminatórias?
Azor Lopes da Silva Júnior:Bem! Essa questão de busca de um equilíbrio entre a segurança como direito fundamental, direito que é colocado já no preâmbulo da Constituição e que cabe ao Estado promover e, também, é repetido na cabeça do artigo 5º, que abre o capítulo dos direitos fundamentais, das garantias constitucionais, essa segurança tem que ser observada, promovida, garantida pelo Estado, mas com um olhar também à outra norma constitucional, que é o princípio da dignidade da pessoa humana e da não discriminação.
E em que aspecto isso passa a ser importante quando se aborda o tema racismo estrutural e abordagens policiais e buscas pessoais feitas sobre as quais paire, fundada, suspeita?
Eu acho que tentar estabelecer o equilíbrio é o grande dilema, e o caminho para resolver esse grande dilema é aquilo que vem sendo feito há muito tempo -falo como quem integrou a Corporação, como disse, por 33 anos-, -falo como quem, nos anos 90, foi um dos primeiros professores de direitos humanos num curso que foi promovido inicialmente pela Anistia Internacional no Brasil, tendo como um dos seus professores o representante da Anistia Internacional aqui no nosso país, que é o professor Ricardo Brizola Balestreri, que mais tarde seria o Secretário Nacional de Segurança Pública nos anos dois mil- É exatamente com base nesse antigo, já histórico, de foco das forças de segurança, de foco do próprio poder judiciário, das escolas da magistratura, foco das escolas do Ministério Público, onde esse tema não discriminação, não ao preconceito ou à discriminação ou racismo estrutural é colocado, de maneira pedagógica, há muito tempo, é que talvez, e eu tenho certeza "cá com os meus botões", esse seja o caminho!
Porque também me parece inegável, como disse em alguns instantes, que não se pode dizer que o Brasil não tenha consigo arraigado na sua formação antropológica, na sua formação social, ao longo da sua história, traços de racismo. É bem verdade que o racismo, que é, por excelência, absolutamente abominável -a discriminação é absolutamente proscrita por qualquer das suas formas-, é diferente aqui no Brasil, ao longo da história brasileira, daquilo que aconteceu, por exemplo, com a política de segregação nos Estados Unidos! Lá, muito mais grave! É diferente também o que aconteceu no Brasil daquilo que aconteceu na África do Sul, até que fosse eleito depois de preso Mandela, onde o Apartheid vigia! Mas nem por isso se pode dizer, sob o ponto de vista ufanista ou de eufemismo, que aqui no Brasil não haja o preconceito, não haja o racismo. Agora, quando se cunha esse termo racismo estrutural, me parece que isso é um exagerar na dose, um exagerar em ações afirmativas. Porque, ainda que se reconheça que cada um de nós traga consigo, talvez inconscientemente e geneticamente, traços de preconceito racial, por conta da história, por conta da nossa formação social, o fato é que, quando investidos de poder, sejam agentes das forças de segurança, sejam, finalmente, juízes, magistrados do poder judiciário, me parece que seria injusto passar tábula rasa em todos os profissionais e dizer que todos abusam do poder, motivados por um preconceito racial ou por aquilo que modernamente vem se chamando de racismo estrutural! Eu acredito que não é isso que leve policiais a realizarem abordagens.
Acredito que também não é isso que leva a membros do Ministério Público denunciarem criminosos, tampouco os magistrados que os condenam, baseados exclusivamente ou, tão somente, ou, até indiretamente, na cor da pele! Na verdade, são as condutas em que foram flagradas essas pessoas, pouco importando se são negras ou não, é que as leva a comporem a população carcerária, que majoritariamente é negra, pelas razões que respondemos há poucos instantes. Uma população majoritariamente negra, uma população majoritariamente pobre, dos estratos menos elevados socioeconomicamente da nossa sociedade, e que são cooptadas pelo crime organizado, particularmente o tráfico! O que se pode investir cada vez mais é exatamente na afirmação pedagógica a todos que integram o sistema, a máquina de justiça criminal, para que, se tiverem incutidos do seu subconsciente algum ímpeto de sentimento racista, afaste esse sentimento no momento em que exercem o poder que lhe é conferido pelo cargo de que são investidos.
Washington Clark dos Santos:A obra menciona o debate entre os direitos fundamentais e a segurança pública.
Como o senhor avalia a tensão entre o direito à segurança e o respeito à dignidade humana, especialmente no contexto de populações negras e periféricas?
Azor Lopes da Silva Júnior:Essa tensão que o senhor formula na sua pergunta entre o direito à segurança e o respeito à dignidade da pessoa humana, especialmente nesse contexto apontado das populações negras e periféricas, eu acho que deve ser observado por lentes um pouco mais atentas, como essas que eu vim me referindo nas respostas anteriores. E eu me lembro que uma das primeiras obras que li, que adotei como professor, e sou professor, como disse, de Direito Penal e Direito Constitucional há mais de 26 anos, professor universitário, uma das obras que primeiro adotei como professor era exatamente uma obra de Dalmo de Abreu Dallari. E nessa obra de Dalmo Dallari, chamada Elementos da Teoria Geral do Estado, publicada, salvo engano, pela Editora Saraiva, num capítulo especial, Dalma Dallari falava exatamente de alguns dilemas, de alguns contrapontos. E um deles era exatamente esse, do exercício da autoridade e do respeito àquele que sofre ou que recebe a ação da autoridade. É um dilema eterno que não acontece só no Brasil, não acontece só em países emergentes ou do Terceiro Mundo, mas que acontece em todos os países. Nós vamos ver recentemente a morte que aconteceu durante uma imobilização de um negro nos Estados Unidos que movimentou todo o planeta! Nós vimos, depois daquele episódio, estátuas postas em áreas centrais da Europa serem derrubadas. Nós vimos movimentos feitos em Nova York, nos Estados Unidos, mas também em toda a Europa! Esse não é um fenômeno próprio e tão somente de países periféricos, de países do Terceiro Mundo, como é o Brasil, ou emergentes, como preferem outros dizer. É um fenômeno natural, esse dilema entre o exercício do poder para promoção de segurança pública e o respeito limite que muitas vezes é um fio de navalha em que tem que se caminhar, o respeito aos direitos fundamentais, porque inegavelmente também do lado da criminalidade, e aqui pouco importa se o criminoso é negro ou branco, o fato é que o criminoso não tem muito a perder ou, às vezes, nada a perder num embate com as forças de segurança! Essa é a opção dele, por razões que a criminologia só pode tentar nos revelar. Então, quando se diz que essa busca de equilíbrio é uma busca incessante do ser humano, o fato é que a nossa Constituição, como todas as cartas democráticas, ela garante o direito à segurança de todos nós e de uma outra banda também, o respeito à dignidade da pessoa humana, o devido processo legal, o direito à não auto-incriminação e outros tantos direitos, inclusive aos criminosos! O direito da presunção do estado de inocência até que venha uma sentença penal transitada e julgada. Então, é exatamente esse conjunto de direitos que acaba sendo atuada, acaba formando as balizas que endereçam, indicam aos operadores do direito, especialmente aqui, me refiro aos que compõem o sistema de justiça criminal, as balizas para que se ande sobre esse fio de navalha sem se violar direitos fundamentais, mesmo daqueles que são criminosos e pouco se importam com os direitos dos outros, das vítimas dos seus crimes, ou dos policiais que tentam obstaculizar a sua ação criminosa! O fato é que um agente público, seja ele policial, seja ele membro do Ministério Público ou magistrado do Poder Judiciário, não pode se dar esse desfrute. Porque o poder não é um algo seu. O poder é um poder conferido pelo Estado, essa ficção jurídica chamada Estado, e dentro de estreitos limites. Os limites são postos pelo devido processo legal. Pensar essa questão é um tema sempre presente, sempre constante, mundialmente constante, porque é também uma demanda de segurança cada vez mais crescente da sociedade, e num cenário em que se vê, mais do que nunca, o crescimento da criminalidade organizada, e uma criminalidade organizada que não encontra fronteiras, uma criminalidade organizada que age de maneira extremamente violenta, não só com as forças de segurança e contra as forças de segurança, mas também contra a própria sociedade!
Washington Clark dos Santos:De que forma a obra discute a formação dos pacificadores sociais no Brasil em relação ao combate ao racismo nas abordagens e buscas pessoais? Existem recomendações para mitigar esse problema?
Azor Lopes da Silva Júnior:Eu já aplaudo a pergunta que o senhor formula nesse instante, porque aponta para os agentes de segurança como o que de fato eles são: pacificadores sociais! São exatamente os agentes de segurança, aquele policial militar de uma pequena cidade de qualquer canto desse nosso país, aquele guarda municipal, muitas vezes agindo de maneira isolada, que tenta, a qualquer hora do dia, a qualquer hora da noite, todos os dias do ano, sem recesso forense, agir porque é chamado pela população, é chamado por uma vítima, quando se toca o telefone 190! E é nessa perspectiva que eu, como disse, aplaudo quando o senhor aponta esses profissionais como pacificadores! Mas, eu não digo em tom de ufanismo ou mesmo de eufemismo! Eu digo porque essa é uma realidade, especialmente num país onde são exatamente esses profissionais que chegam onde muitas vezes o Estado não chega! E, muitas vezes, se diz no discurso retórico, que eles chegam para reprimir, e nem sempre para reprimir! Muitas e muitas vezes, chegam esses agentes das forças de segurança para dar o socorro que outras áreas do Estado não chegam! Fazendo partos, salvando pessoas. Então, é preciso ter esse olhar também quando se encara esse tema, porque senão nós vamos entender que todos eles, na verdade, são instrumentos de um Estado que busca reproduzir, replicar e reforçar o racismo, a discriminação e o abuso de poder, quando na verdade isso é injusto para essa centena de milhares de profissionais do sistema de justiça criminal, que não envolve -repito- só agentes de força de segurança, mas também membros do Ministério Público que denunciam aqueles que são presos, juízes de direito que condenam aqueles que foram denunciados e tribunais de apelação que mantém as sentenças de primeira instância quando são condenatórias e que, portanto, levam essas pessoas, sejam negras ou não, sejam pobres ou não, para comporem essa massa que forma o nosso sistema carcerário! Agora, quando a gente fala das buscas pessoais, que é o primeiro passo para se identificar prova de crime, é exatamente por meio de uma busca pessoal que, naquele julgado que a obra aborda, que é do Superior Tribunal de Justiça, e a gente se refere aqui, particularmente é isso que a obra encara desde o começo, como eu disse, o recurso em Habeas Corpus número 158-580 da Bahia, julgado no dia dezenove de abril de vinte e dois, porque o recorrente no caso concreto era uma pessoa com a qual foi encontrada uma relativa quantidade de droga -e não só droga- como se fosse para consumo pessoal, mas também petrechos empregados usualmente na traficância, como é o caso de uma balança de precisão e uma certa quantidade de dinheiro em notas pequenas, que com aquele abordado, que em seguida foi submetido a uma busca pessoal, se encontrou. Então, quando nós encontramos esse cenário, nós não podemos também pender para o romantismo e dizer que aqueles policiais abordaram uma pessoa suspeita simplesmente porque ela era negra e estava sob uma moto. Não é isso que leva à fundada suspeita; a cor da pele! E não é isso que se ensina! E esse caso em particular aconteceu, como eu disse, no estado da Bahia! Se a média nacional de população carcerária é majoritariamente negra em todo o território nacional, na Bahia essa proporção de negros e não negros é muito maior! Inclusive, aqueles policiais que fizeram abordagem eram negros!
Então, eu não posso dizer que houvesse ali como se fosse um grupo de policiais que estariam investidos na função de "capitão do mato", de algozes dos seus próprios conterrâneos, daqueles que também são negros! Na verdade, o que se buscava reprimir é o tráfico de drogas! Então, de alguma forma, quando nós, nessa obra, abordamos a questão, nós trazemos uma visão crítica a pelo menos um dos fundamentos que levou Sua Excelência, o Ministro Rogério SChietti Cruz, a definir os parâmetros daquilo que ele chamou de busca pessoal.
E aí eu insisto, pelo menos na nossa visão, até diferente de muitos colegas da polícia, a abordagem policial não se confunde com busca pessoal, como já se disse!
A abordagem policial é um instituto amparado pelo direito administrativo, pelo poder de polícia, que é definido pelo Código Tributário Nacional, no seu artigo 173. Já, a busca pessoal, ela é prevista no Código de Processo Penal, exatamente como meio de produção de prova em um processo futuro, criminal! Então, como eu já acentuei e vale sempre repisar, eu, enquanto policial, tenho o poder-dever de abordar pessoas e ter uma interlocução verbal com elas. Pedir documentos. Tirar alguma dúvida e, se dessa abordagem policial, dessa interação, dessa interlocução que faço com essa pessoa restar alguma fundada suspeita de que essa pessoa abordada traga consigo armas, objetos, papéis de origem criminosa, ou que seja um produto de crime ou instrumentos de crime, aí, graças a essa fundada suspeita, num segundo estágio que sucede à abordagem, aí eu me legitimo, por força do Código de Processo Penal, sem a necessidade de mandado judicial, eu me legitimo a realizar a busca pessoal! E essa busca pessoal, claro que ela pode ser frutífera ou infrutífera. Posso nada encontrar com aquela pessoa sobre a qual pairava a fundada suspeita, mas, nem por isso a fundada suspeita deixa de sê-la. Então, isso é um ponto que me parece as agências policiais e a comunidade jurídica devem refletir um pouco mais! Porque, em muito, acontece de definirem políticas públicas no campo da segurança com algo que se convencionou chamar de busca pessoal preventiva, que é nada mais, nada menos do que uma política de abordar pessoas em determinados locais, às vezes grandes centros de aglomeração de pessoas, às vezes nas periferias, simplesmente com o objetivo de prevenir a prática de crimes, mostrar que a polícia está atuante. Mas não é isso que diz o Código de Processo Penal! Para submeter uma pessoa à busca pessoal, você tem que definir que exista realmente fundada suspeita de que essa pessoa traga consigo algo que seja ou instrumento de crime ou produto de crime. Não é com o objetivo de prevenção da criminalidade que se consiga, na minha visão, a legitimação da busca pessoal. A abordagem, sim! A abordagem preventiva, sim! Mas não admito, particularmente, sob o ponto de vista jurídico, a busca pessoal preventiva.
Washington Clark dos Santos:Considerando os aspectos raciais e de segurança pública, como a obra "Polícia Preventiva no Brasil" propõe que o debate democrático entre juristas, policiais e sociedade civil evolua para combater o racismo estrutural nas abordagens?
Azor Lopes da Silva Júnior:Eu lhe agradeço de antemão a oportunidade de falar com o seu público e com o senhor e expor essa nossa tese e digo que a obra contribui, respondendo a sua pergunta, exatamente porque ela traz à comunidade jurídica, à comunidade acadêmica e à comunidade em geral outros olhares. Como eu disse, são 17 autores, autores que compõem Ministério Público, que compõe o Poder Judiciário, que compõe agências policiais não só de São Paulo, mas de vários estados da federação, e que reflete em cima de um estudo de caso, que é exatamente esse julgado do Superior Tribunal de Justiça, trazido em dezenove de abril de dois mil e vinte e dois, o recurso em Habeas Corpus, insisto mais uma vez, número 158-580 da Bahia e, quando nós jogamos essas visões de tantos autores à comunidade científica, à comunidade acadêmica, talvez o maior propósito nosso seja, particularmente meu como coordenador da obra, seja exatamente concitar a todos que integram as forças vivas da sociedade e forças que estejam dispostas a isso que o senhor me pergunta -ao debate- que compareçam ao debate de maneira serena e desarmada. Porque, tão pecaminoso me parece ser o agir de uma autoridade policial, o agir de um membro do Ministério Público, o agir de um magistrado, a partir do chamado racismo estrutural, como também me parece igualmente negativo, e uma atitude que fecha ao debate, o tratar todos esses que integram o sistema de justiça criminal como se agissem a todo instante, na forma de algozes motivados por aquilo que se convencionou chamar de racismo estrutural! Me parece ser injusto, igualmente injusto! E, diria até de certa forma, igualmente uma discriminação! Agora, uma discriminação contra as autoridades públicas que integram esse sistema de justiça criminal. Portanto, o grande o chamamento que nós fazemos é que se debata a questão, não se fuja da realidade sócio-histórica e cultural do Brasil, negando que haja racismo, mas também não se faça da questão tábula rasa, dizendo que todo o sistema opera baseado exclusivamente nisso e que, graças a essa ação pecaminosa, é que tenhamos na população carcerária majoritariamente cidadãos da periferia e majoritariamente negros.
Washington Clark dos Santos:Chegando ao final de nossa conversa, o parabenizo pela obra e, com os meus cordiais agradecimentos, deixo este espaço para suas considerações finais. Grande abraço!
Azor Lopes da Silva Júnior:Eu é que agradeço pelo honroso convite, como abria essa nossa entrevista, de poder compartilhar um outro olhar e, na verdade, 17 novos olhares sobre essa questão que é tão central quando se pensa em promoção de direitos humanos, quando se pensa em respeito à dignidade da pessoa humana e, ao mesmo tempo, quando se encara um sério problema que não só no Brasil se enfrenta, mas que em todo o mundo é enfrentado, que é o problema da criminalidade organizada transnacional, do tráfico de drogas, do comércio e do tráfico de armas, que se mostra tão violenta, não só contra e em reação às agências policiais, mas, acima de tudo e principalmente, uma criminalidade que opera cada vez mais, mantendo a população dos estratos socialmente, economicamente menos favorecidos da sociedade, num processo que eu diria de escravidão! É exatamente o crime organizado que faz com que os antigos escravos, os descendentes de escravos, e não só eles, mas também aqueles que não são dessa origem, escravos eternos de um injusto sistema que coopta pessoas que deveriam estar nas escolas, pessoas que deveriam ter respeitado seus direitos fundamentais, mas que são cooptados assim para o submundo do crime e uma massa, um exército de desfalecidos aos quais esse mesmo empresário do crime organizado dá de ombros, porque na verdade eles nada mais são do que a ponta de um grande varejo, de um bilionário varejo e que não tem o mínimo respeito à condição humana de qualquer um deles e menos ainda a sociedade como um todo! Eu lhe agradeço e me coloco sempre à disposição e saúdo também o seu público ouvinte! Um grande abraço!
Washington Clark dos Santos:Honoráveis Ouvintes! Este foi mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! No conteúdo de hoje, compondo a Série "Questões Raciais na Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil", conversei com o Professor Doutor Azor Lopes, coordenador da coletânea "Polícia Preventiva no Brasil. Direito Policial, Abordagens e Busca Pessoal".
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