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O IMPACTO DO SISTEMA PUNITIVO NA POPULAÇÃO NEGRA.
Episode 11013th December 2024 • Hextramuros Podcast • Washington Clark dos Santos
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Shownotes

A discussão sobre o encarceramento no Brasil se torna cada vez mais urgente, especialmente quando analisamos a intersecção entre raça, classe social e o sistema de justiça criminal! ELI TORRES, policial penal federal e socióloga, oferece uma perspectiva crítica sobre como o sistema penal brasileiro opera de maneira seletiva, afetando desproporcionalmente a população negra e os grupos mais vulneráveis da sociedade. Neste diálogo, são abordados os paradoxos que permeiam a violência, a democracia e os direitos civis, revelando que, apesar dos avanços na democratização, a repressão e o endurecimento das políticas de segurança pública não resultaram em uma diminuição da violência. A pesquisadora argumenta que o aumento do encarceramento, impulsionado por legislações como a Lei dos Crimes Hediondos e a (nova) lei de drogas, não apenas perpetuam a marginalização de certos grupos, mas também fomentam uma cultura de violência que reverbera nas comunidades mais afetadas. As consequências dessas políticas são evidentes em dados alarmantes sobre homicídios e encarceramento, que revelam uma triste realidade: a população negra, especialmente os jovens, é desproporcionalmente impactada por uma abordagem punitiva que falha em abordar as causas subjacentes da criminalidade e da violência.

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Transcripts

ANFITRIÃO:

Honoráveis Ouvintes! Sejam muito bem-vindos a mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião!

No conteúdo de hoje, na sequência da Série "Questões Raciais na Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil", tenho a grata satisfação de receber novamente a policial penal federal e pesquisadora Eli Torres, neste conteúdo, trazendo reflexões fundamentais sobre o encarceramento no Brasil, a seletividade social e racial do sistema de justiça e o impacto dessas dinâmicas na população negra e nos grupos mais vulneráveis de nossa sociedade, visando a compreensão dos paradoxos entre violência, democracia e garantia de direitos civis em nosso país, além de problematizar as políticas públicas voltadas para a segurança e o sistema punitivo.

Saudando-a com as boas-vindas, Eli, agradeço por mais esta contribuição! Uma alegria contar contigo mais uma vez em nosso canal!

Na perspectiva da sociologia da punição a qual você se afilia para analisar o fenômeno do encarceramento, como descreves o panorama para este fenômeno no Brasil?

CONVIDADA:

Olá, Clark! Muito obrigada pelo convite!

Agradeço pela oportunidade de falar novamente aqui sobre o encarceramento no Brasil, sobre a sociologia da punição, sobre as questões raciais que envolvem todo o sistema de justiça criminal. Sua pergunta é muito interessante, porque falar sobre o fenômeno do encarceramento é também falar dos conflitos penitenciários. E esses conflitos penitenciários ocorrem desde o evento também conhecido como Massacre do Carandiru, o advento das rebeliões, das organizações criminosas que atuam a partir das prisões do Brasil.

Mas, tudo isso tem demonstrado o distanciamento da União e dos Estados Federados da função tanto de legislar, quanto do executivo federal em gerir efetivamente o sistema prisional. E também, tudo isso, se desdobra numa constante elevação das taxas de encarceramento. Esse é um ponto. Baixo investimento em políticas voltadas às assistências das pessoas presas, políticas previstas na Lei de Execução Penal, contribuem em alguma medida para o alargamento da invisibilidade das condições de insalubridade das prisões ou aumento do encarceramento e também potencializa esses crescentes conflitos dentro e fora das prisões, porque essas organizações criminosas atuam a partir das prisões e fomentam atos violentos e recorrentes em toda a sociedade brasileira. Sobre essa questão, algumas hipóteses são mobilizadas na literatura especializada para explicar esse crescimento, por exemplo, do encarceramento que tem acontecido no Brasil e, a partir dessa perspectiva da sociologia da punição, isso acontece, sobretudo, por conta de duas direções dentro do campo social. Com o passar dos anos, ocorreu um reaparelhamento dos mecanismos de repressão do Estado. Como o Estado tem o monopólio da violência, que é um monopólio de fazer gestão, inclusive das polícias, existe um aparelhamento dessas polícias com novas tecnologias, enfim, em todas as perspectivas na busca de aprimorar esse serviço da repressão do Estado, esse é um ponto. Essa repressão aliada ao endurecimento legislativo, favoreceu significativamente para a expansão dos indicadores de encarceramento.Por exemplo; entre as alterações legislativas, a Lei dos Crimes Hediondos: os crimes que passaram gradualmente e foram introduzidos no rol dos crimes hediondos a partir de mil novecentos e noventa. Muitas questões foram criminalizadas e tipificadas como crimes hediondos. Isso somado, por exemplo, a uma outra legislação que é a lei conhecida como a nova lei de drogas, que é de dois mil e seis, que não é tão nova mais! Isso relacionado ao uso e tráfico de drogas impactou também significativamente nesses indicadores. Mas percebe-se que, em certa medida, esses fatos favoreceram para o aprisionamento em regime fechado, semiaberto, aberto ou por meio de monitorações eletrônicas e demais medidas alternativas à prisão e restrição de liberdade, de parcela significativa. E hoje nós temos mais de 800 mil pessoas que performam por todo o sistema de justiça criminal no sistema penitenciário brasileiro que sustenta, em números absolutos, uma das maiores populações penitenciárias de todo o planeta! De fato, nós temos mais de 800 mil pessoas cumprindo alguma medida no Brasil. Mas eu penso também e posso afirmar, a partir de leituras, de indicadores, que apesar dessa comprovação na elevação desses indicadores de encarceramento, de endurecimento legislativo, vejam só os exemplos das legislações mais contemporâneas, por exemplo, o pacote anticrime, que endureceu um pouco mais algumas medidas para quem comete algum tipo de crimes específicos no Brasil, nada disso significou a redução dos indicadores de violência e de criminalidade no país! Todos os dados estão postos e esses dados mostram que a repressão e a alteração normativa, ambas associadas, não têm, de fato, efeitos positivos na redução da violência. Esse é um ponto. Existem alguns indicadores positivos em crimes específicos, mas também bastante excipientes e não há ainda uma série de dados para que isso possa, de fato, demonstrar um período e ser analisado com maior confiança. Considerando essas complexidades, eu tenho me ocupado de investigar e documentar e analisar o sistema de punição no Brasil sobre a compreensão de que há uma expansão em curso do encarceramento e das violências em detrimento de investimentos eficientes em políticas públicas e em detrimento também de uma definição de uma política criminal que leve em consideração as complexidades sociais e raciais no Brasil, inclusive no processo de formação de agentes públicos, por exemplo; juízes, promotores, policiais. Então, eu penso que o Estado brasileiro detém pesquisas e indicadores de encarceramento e de violências letais, e isso vai ser divulgado por meio de mapas da violência, dos atos de violência e também, por exemplo, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias da SENAPPEN, do Ministério da Justiça, e todos eles demonstram, claro, guardando a sua especificidade de recorte, de pesquisa, de intenção de produzir o dado, mas o crescimento maciço no aprisionamento no Brasil e ainda explicita a violência letal contra determinados grupos sociais, sobretudo os jovens negros!

ANFITRIÃO:

De que maneira, a partir da teoria sociológica, você analisa o positivismo, o encarceramento e a seletividade social e racial?

CONVIDADA:

O desafio é analisar o positivismo, o encarceramento e a seletividade social numa perspectiva da teoria sociológica, sobretudo dialogando com um público tão seleto, que é um público constituído por trabalhadores e pesquisadores do sistema de justiça criminal, sobretudo policiais. Eu irei recorrer aqui ao Loïc Wacquant, que é um sociólogo francês, radicado nos Estados Unidos, que contribuiu em grande medida para compreender a relação dos fenômenos. O efeito de enderecer a legislação penal, como eu mencionei anteriormente, de modo a impactar sobremaneira os índices de encarceramento, não é uma receita brasileira. Longe disso, o mecanismo foi identificado por Wacquant com impacto sobre as populações pobres, negras, latinas, no período analisado, por exemplo, entre os anos de mil novecentos e setenta e três e mil novecentos e noventa e seis nos Estados Unidos, como fruto de uma política de reestruturação do Estado de característica econômica e uma característica econômica neoliberal. Vamos guardar esse ponto. Por exemplo; ele destaca um gradativo período de diminuição de políticas de assistência social iniciadas nos Estados Unidos e exportada como modelo viável a outros países, sobretudo países da Europa, em uma espécie de programa que substituiu gradativamente o estado de bem-estar social por um estado penal que amplia e massifica as penas e reifica o estigma de uma simbiose entre pobreza e delinquência. e isso foi exportado como padrão estabelecido. Então, eu irei utilizar o modelo estadunidense para repensar como tudo isso aconteceu tardiamente no Brasil. As políticas penais desenvolvidas no seio da sociedade estadunidense tiveram implicações mundiais, como eu venho reafirmando aqui, e é a perspectiva tratada por Wacquant, no sentido que essas implicações mundiais ultrapassaram a clivagem do que é concebido como crime e castigo e assumiu uma missão de instituir novas formas de governo da população submetidas ao processo de desregulamentação do reordenamento econômico. O grande desafio da sociologia é esclarecer para a população que há uma organização social, econômica e política que gerencia toda essa maquinaria de gestão do crime, de segurança pública, das populações com pouco potencial de consumo. Nessa perspectiva teórica, tem muitas outras perspectivas e formas de explicar o mesmo fenômeno, mas, é uma perspectiva muito aceita dentro da sociologia da punição, das maneiras da sociologia compreender esse fenômeno do aprisionamento. Pois bem, mas, vamos guardar essa pista e pensar que a flexibilização das responsabilidades do Estado da Providência, que era aquele Estado que oferecia assistência do Estado à população, aconteceu uma transposição para um Estado da Penitência, porque naquele momento o Estado reduziu suas responsabilidades -estamos falando dos estadunidenses-, vamos pensar globalmente, e essa redução das responsabilidades se tornou exemplo para países da Europa. A chave da prosperidade, num sentido que seria uma receita simplista, menos Estado e mais repressão para aquele grupo, destoando da regra estabelecida por esse estado, que é um estado mais penal. E no caso do Brasil, o endurecimento da legislação pode ser constatado, sobretudo a partir dos anos 90, com o advento, por exemplo, da Lei dos Crimes Hediondos, que indica que a nova legislação alterou o ordenamento jurídico e incluiu novos crimes nesse rol dos crimes hediondos, dificultando a possibilidade, por exemplo, de pessoas acusadas por crimes de buscarem recursos e liberdade. Isso aumentou em alguma medida o encarceramento. Tem uma pesquisa interessante que comprova essa tese, realizada com base nos dados aqui no Brasil, dado o estado de São Paulo nos anos 90, que analisou registros criminais, sobretudo de crimes de roubo do estado de São Paulo, no período de noventa e um e noventa e oito, e essa pesquisa, por exemplo, constatou que réus negros são proporcionalmente mais condenados do que brancos e permanecem, em média, mais tempo presos durante o processo judicial. A partir de dados do próprio Estado, a constatação que tem esse recorte de classe e raça, sobretudo de raça, é muito presente! Mais recentemente, tem uma outra pesquisa, que é a do ano de dois mil e quatorze, que demonstra que essa desigualdade social e segurança pública -também é uma pesquisa com recorte do estado de São Paulo- existe uma realidade de letalidade policial no estado de São Paulo, ao analisar os perfis de vítimas e dos autores, que confirma uma seletividade etária, porque são jovens, e racial em debate no Brasil. É muito importante a gente fazer essa reflexão e como tudo isso é uma questão social que é possível de análise a partir de uma perspectiva sociológica.

ANFITRIÃO:

Considerando o sistema punitivo e a seletividade social, com o recorte nas questões raciais, podes problematizar o aprisionamento por meio da observação dos perfis de pessoas aprisionadas, tipos de crimes, faixas etárias, grupos sociais e fenótipos.

CONVIDADA:

Problematizar o aprisionamento por meio da observação de perfis é fundamental para compreender um pouco mais sobre o encarceramento no Brasil. Os indicadores relacionados ao encarceramento demonstram que é predominante a constituição de um sistema carcerário no Brasil constituído por jovens negros, revelando aspecto do punitivismo em uma escala crescente ao lado dos dados de violência letal que incide sobre esse mesmo público jovem e negro. Isso tem explicitado um panorama de seletividade, sim, etária, social, racial, e é importante que a sociedade brasileira fale, promova um debate sobre isso, sobre o sistema punitivo altamente seletivo, quando comparamos, por exemplo, com os dados nacionais e internacionais. Também, em relação ao crescente encarceramento de pessoas no Brasil, leva à situação de cárcere com maior permanência os jovens negros, como indicam as pesquisas, moradores de setores mais populares, que é um crescimento acelerado nas últimas décadas de mulheres presas também, é um outro fenômeno vinculado, entre outros aspectos. A maior participação feminina nos crimes relacionados ao tráfico de drogas também é um outro aspecto e é um fenômeno bastante recente no Brasil. Tudo isso, também, passa pelo abuso de drogas e crimes cometidos para manutenção do vício. Por exemplo, a influência do vício e a incapacidade de tratar a questão como questão de saúde pública e não meramente como criminal. Isso deveria, sim, permanecer no centro do debate das políticas públicas no Brasil. Isso não acontece no Brasil, infelizmente! A questão do abuso de drogas está amplamente judicializada, criminalizada. Mas sobre o tema, eu recomendo aqui a escuta do podcast da Alessandra Siqueira, que trata de maneira brilhante a questão da dependência química de drogas ilícitas e a relação com o aprisionamento no Brasil! Mas esse aumento vem sendo justificado por diversos segmentos como resposta ao suposto crescimento da criminalidade violenta, o crime organizado, sobretudo do tráfico de drogas, e de conflitos sociais de diversas ordens, em sua grande parte decorrente das exponenciais desigualdades sociais que impactam o acesso a direitos básicos no Brasil. Ao lado de uma postura, na minha perspectiva, de inflexão em geral do Estado em relação às políticas públicas. As políticas públicas não estão no centro do debate quando falamos de abuso de drogas. Tudo isso impacta no sistema penitenciário! Penso que um balanço desses aprisionamentos indica que boa parcela de privadas de liberdades estão reclusos via dispositivos de prisão preventiva, de prisões provisórias, os quais se apresentam como instrumentos jurídicos, no caso as prisões, se apresentam como instrumentos jurídicos eficazes para a manutenção dessa parcela da população. E não vamos esquecer a reflexão dada pelo Wacquant, que uma parcela da população sem recurso econômico oriunda das camadas populares. E essas pessoas que estão presas no Brasil!

Todos sabem que essa clientela carcerária é constituída por maioria de pessoas jovens e negras, moradores de regiões periféricas, que se encontravam já no período anterior à prisão excluídos das demandas de consumo ou pouco acesso às políticas sociais. Nós apenas não falamos sobre isso, mas há uma compreensão relativa sobre isso. Nesse contexto, e partindo dos principais indicadores de dados que são sistematizados e divulgados sobre o tema no país, há, por exemplo, grupos de trabalho das Nações Unidas sobre detenção arbitrária -tenho memória de um, do ano de dois mil e treze, que, em visita o Brasil, criticou a excessiva privação de liberdade como principal proposta punitiva e identificou um tratamento desigual do sistema de justiça penal com as populações pobres e negras! Eu só trago essa informação como elemento de comprovação! Porque essa desigualdade de tratamento, ela se associa ao fenômeno chamado de "genocídio da população negra", que os pesquisadores indicam que tem um viés racista que acaba se associando ao recorte etário e social! E essa questão é discutida por pesquisadores e também é uma questão de conhecimento, por exemplo, do Ministério da Igualdade Racial. Essa questão é amplamente também denunciada pela sociedade civil organizada. Então, tardiamente, o Brasil não reduziu o encarceramento e a prevenção de violências às populações negras. Especificamente sobre racismo, quero apresentar uma análise importante que me ocorreu aqui: o IPEA tem uma nota técnica denominada "Vidas Perdidas e Racismo no Brasil", explicitando, entre outros aspectos, que a letalidade violenta é uma herança das discriminações econômicas e raciais contra os afrodescendentes no Brasil. Em termos proporcionais à população em geral, por exemplo, essa nota indica que para cada indivíduo não negro, aqueles que não estão inclusos no grupo vulnerável, 2.4 negros são assassinados. Outro exemplo que eu escrevi a respeito, a partir de números do Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde, o DataSus, que chama-se SINDataSus, entre o ano de dois mil e oito e dois mil e onze, houve 206 mil homicídios no Brasil. Uma média de 140 homicídios por dia! No ano de dois mil e onze, por exemplo, verifica-se que mais da metade dos 52 mil mortos por homicídio eram jovens. Algo em torno de 53%, dos quais, 71,44% eram negros e 93% deles eram homens! Numa perspectiva constitucional, numa perspectiva civilizatória, o país precisa aprimorar os mecanismos nacionais de controle social visando o enfrentamento ao homicídio de jovens e a superação de racismo no Brasil! É inconcebível esses dados! Poderemos ficar aqui falando horas sobre a morte da população negra e vitimada no Brasil. Por fim, eu vou trazer mais um dado que é do Atlas da Violência, -também, de dois mil e dezessete-, ele foi lançado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ele reafirma que homens jovens, negros, de baixa escolaridade, são as principais vítimas de mortes violentas. A população negra corresponde à maioria dos 78,9% dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vitimadas por homicídio. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras! De acordo com o Atlas de dois mil e dezessete, os negros possuem 23,5 chances -são maiores as chances- de serem assassinados em relação aos brasileiros de outras raças! Então a minha questão fica aqui para todos: temos ou não vidas negras perdidas no Brasil?

ANFITRIÃO:

Sob o ponto de vista dos indicadores de encarceramento e violência, surgem vários debates sobre as causas da violência e a necessidade de uma ação governamental pela via da segurança pública e das políticas públicas. Podes falar sobre como abordas e compreendes tais ações?

CONVIDADA:

Sim, é verdade! Surgem vários debates sobre as causas da violência e a necessidade de uma ação governamental. Penso que essa seletividade manifesta-se subjetivamente quando as instituições do sistema de punição agem predominantemente focadas em comportamentos ou fenótipos de atores sociais determinados, gerando desigualdades de tratamento nos campos da segurança pública e da justiça criminal latu sensu. Isso significa que há infrações e parcela de indivíduos que são incluídos, a priori, em grupos de suspeitos em relação a outros extratos da população. Porém, essa seletividade social, ela é tácita, ela não é dita, não tem previsão em lei, mas ela é reificada todo o tempo durante as abordagens policiais, ela é seguida para apreciação de mérito pelo sistema de justiça criminal, e daí nós estamos falando de juízes, promotores e assim sucessivamente. Ainda que a aplicação desigual de regras e procedimentos judiciais a indivíduos de diferentes grupos sociais seja um tema recorrente em vários estudos das ciências sociais, eu penso que são pontuais as pesquisas que analisam essa relação entre encarceramento, essa seletividade racial, social e etária no sistema de punição. Então, apesar da pertinência, observo que também são pontuais as análises que contemplam a escalada de violência contra a população negra, jovem, identificada pelos índices de violência letal no Brasil. Nesse ponto de violência letal, surgem vários debates, como você menciona, sobre as causas da violência e também a respeito da necessidade de ação governamental. Mas essa ação governamental deve acontecer pela via da política pública eficaz e, desta vez, que a política pública priorize propostas e diretrizes na condição de promover o exercício da cidadania, em consonância com o que preconiza a legislação constitucional e infraconstitucional vigente sobre os direitos e garantias sociais. Penso que temos a proposta do Ministro Lewandowski sobre o fortalecimento do Sistema Único de Segurança Pública e por meio da constitucionalização da Lei do SUSP, que é uma questão amplamente debatida na atualidade. O atual texto constitucional prevê no artigo 24, que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal, legislar de forma concorrente sobre o sistema penitenciário. Eu penso que a Constituição Federal limita, em certa medida, os níveis de atuação e intervenção e de autonomia da União sobre os Estados. Então, compreendo que robustecendo o SUSP com a inclusão na Constituição Federal será um rompimento de paradigma, mas existirá muitas discussões e não é possível prever nem mesmo se haverá aprovação e qual texto será aprovado. Voltando à questão da lei do SUSP, ela já contempla, porém, direcionamentos específicos para as políticas de segurança pública com foco em cidadania e na prevenção da violência com eixos norteadores. Esse texto foi aprovado à época de quando o ministro da Justiça era o Raul Jungman. Uma outra temática presente na nova gestão é a implementação das câmeras corporais nas polícias estaduais, penitenciárias também, guardas municipais, considerando que o uso de câmeras preserva a atuação dos bons policiais, essa é a minha perspectiva, os quais são ampla maioria nas corporações! Penso que vale dizer ainda que as polícias são formadas por trabalhadores -eu sempre reafirmo esse meu posicionamento- as polícias são formadas por trabalhadores, pessoas das camadas populares, das regiões periféricas. É a mesma população que é vitimada pelas violências provocadas pelos grupos organizados, os grupos criminosos e, pela mesma população que sofre com o afastamento do Estado, que deveria implementar políticas públicas relacionadas à saúde, à educação, à lazer, à cultura, mas que, por ausência dessas políticas, o Estado, em outra direção, investe em repressão por meio da segurança pública! Isso é muito contraditório! Então, o policial sai das camadas populares, dos bairros periféricos e vai assumir uma função no Estado como braço repressor do Estado. Atualmente, existe a retomada do PRONASCI, que é o Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania, que é um programa histórico, criado lá no ano de dois mil e sete e que também é uma outra iniciativa relevante, porque braço do PRONASCI acolhe esse policial com formação continuada para atuar na segurança pública brasileira. É um programa com escopo nacional. Essa iniciativa é bastante relevante!

Porém, ainda mantenho a expectativa de maiores investimentos e que desenvolva o eixo de formação, como mencionei aqui, de formação continuada das polícias, mas no movimento de transformação de contracultura, e não apenas oferecendo cursos, policial recebendo bolsa, sem um processo de reflexão sobre o ensino e aprendizagem dos policiais. Porque eu espero um processo de formação continuada das polícias no movimento, como mencionei, de contracultura por meio de ensino, pesquisa, conhecimento, policiais que compreendam a história, e compreendam a histórica relação de opressão e sobreposição do policiamento preventivo pelo repressivo quando se trata de populações negras e de moradores das regiões populares. Eu acho que seria um movimento de valorização ao PRONASCI, que seria uma questão importantíssima para essa nova fase da segurança pública no Brasil! Penso no sentido de mobilizar também os mecanismos estatais em busca de prevenção de futuros crimes pela via da política pública, alicerçado em especial no reparo da garantia e respeito dos direitos sociais de indivíduos em situação de vulnerabilidade e, sobretudo, de um processo que a segurança pública, os operadores da segurança pública respeitem e promovam a dignidade da pessoa humana. E, na minha concepção, só é possível promover um sistema de justiça criminal por meio do processo de formação continuado eficaz, que exista reflexão entre o ensino e a aprendizagem e que, sobretudo, seja focado na dignidade da pessoa humana.

ANFITRIÃO:

Você já escreveu que identifica um paradoxo entre violência, garantia de direitos civis e exercício da democracia no Brasil, sobretudo pelo impacto no sistema de justiça criminal.

Nessa direção, podes esclarecer qual a relação entre violência e democratização no Brasil, em especial quando se observa a linha tênue que envolve violência, aprisionamento e os grupos mais vulneráveis, incluindo a população negra?

CONVIDADA:

Sempre me faço a seguinte questão: como garantir o empoderamento e a dignidade humana pela segurança pública, observando a prevenção à violência, os direitos humanos e tudo isso sob a batuta de um Estado democrático de direito, um Estado garantista? Temos que trabalhar com esse foco! Eu afirmo, reafirmo, que há um paradoxo entre violência e democracia no Brasil, em especial quando se observa que nas últimas décadas houve um avanço e a consolidação do Estado Democrático no país. Como último teste, ocorreu no 8 de janeiro, que mostrou o fortalecimento do Estado Democrático, das instituições no país e a manutenção das garantias constitucionais e, na mesma medida, ocorre também e ocorreu o crescimento da violência urbana e, com ela, o surgimento e consolidação também de organizações criminosas e sem que uma tenha conseguido frear a outra. E é um grande paradoxo! Falando especificamente sobre o Estado Democrático, sigo o entendimento que o advento da democratização, a partir de mil novecentos e oitenta, não interferiu nas práticas anteriores adotadas pelas instituições de controle. Uma das práticas, tardiamente, que permanecem do Estado Brasileiro é a forma repressiva de atuação das forças policiais. Gradualmente, estamos superando, inserindo tanto por meio de processo de formação continuada, tanto pelo uso de novas tecnologias para o aperfeiçoamento da oferta da segurança à população mas, pouco o estado democrático brasileiro, a partir do período de redemocratização, interferiu nas práticas anteriormente postas! Então, penso que nem a polícia, tão pouco o sistema judiciário, são capazes de garantir a população segurança pública e padrões mínimos de justiça e respeito aos direitos humanos e paz social! Ainda temos um grande desafio no campo da segurança pública nesse sentido!

ANFITRIÃO:

Caminhando para o final deste conteúdo, agradeço novamente pela sua colaboração, Eli! Coloco este espaço para suas considerações finais. Até breve e grande abraço!

CONVIDADA:

Querido Clark! Um amigo por afinidade de trincheira, de compromisso com a segurança pública! Eu quero agradecer a oportunidade de dialogar a respeito de uma temática com essa envergadura, com especial atenção às questões raciais que nós, negros, vivenciamos todos os dias quando acordamos e nos prontificamos a nos relacionar com uma sociedade demarcada por recorte econômico. Sociedade de consumo, como nós falamos nas ciências sociais, que você é o que você possui, o que você aparenta ser. Uma sociedade demarcada por questões, sim, reafirmo, e nosso diálogo demonstrou isso, por questões raciais, etárias, de gênero, e que nós temos que permanecer ativos e reflexivos e avaliando em que medida, numa perspectiva de operadores do sistema de justiça e segurança pública, como nós podemos interferir e contribuir com essa questão tão central e necessária! Os dados demonstram que os rumos adotados pelas políticas de segurança pública não são acertadas! As políticas não são acertadas, os rumos são equivocados até aqui! Eu pergunto para você, eu deixo aqui para o nosso diálogo, para comentários, para futuros debates: os senhores, as senhoras que estão na escuta, estão se sentindo mais seguros? Certamente as respostas convergem como negativas! Eu fico por aqui. Agradeço pelo debate, pela oportunidade e permaneço à disposição!

Muito obrigada novamente pela grande oportunidade!

ANFITRIÃO:

Honoráveis Ouvintes, este foi mais um episódio do Hextramuros! Sou Washington Clark dos Santos, seu anfitrião! No conteúdo de hoje, na sequência da Série "Questões Raciais na Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil", conversei com a policial penal federal, socióloga e pesquisadora Eli Torres. Quer saber mais sobre este conteúdo? Acesse os links de pesquisa em nosso website. Inscreva-se, comente e compartilhe nosso propósito!

Será um prazer ter a sua colaboração! Pela sua audiência, muito obrigado e até a próxima!

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